Dormi mal. Há noites assim, curtas. Entrecortadas é uma melhor imagem do que realmente acontece. Explico: a idade avança e o cão ladra. Conjugam-se assim dois factores que estorvam um sono tranquilo. Esta noite foi portanto agitada, como sugeri antes. Para o facto muito contribuem, também, os sonhos em technicolor.
Poderia estar a crocitar sobre as já não muito novas notícias do fim de dia de ontem, ainda da que as da madrugada de hoje sejam apenas a sua versão em forma de letra. Seria de facto surpreendente se as notícias de cada dia, da manhãzinha, fossem como muitos as imaginam, tal qual o pão que na noite o padeiro amassou e cozeu. Tostadinhas, estaladiças, frescas. Só o fuso horário nos traz essa ilusão. Mas as nossas notícias, neste país esguio, não se desviam do tmg , há direita e à esquerda, em cima e em baixo, ainda que sejam de considerar os diferimentos ilhéus. Mas nem estes fazem da noite dia, e vice-versa. Excluída então, deliberadamente, a croniqueta acerca dos candidatos em campanha, independentes e outros, do exemplo que dão, desde o faça você mesmo [a recuperação de um imóvel degradado ou o vídeo para o youtube] ao sindicalíssimo apelo ao futuro desemprego [os a recibo verde da autarquia Lx, 1400, que atentem no risco que foi confiar nos antecessores e nos outros candidatos]. No mais nada de monta, para além da dúvida de uma campanha alegre, ou não, de um pulmão verde, ou não, de uns pós percentuais a discutir entre mais residuais candidaturas com peso, ou não, no futuro executivo. De resto ficam notícias sem mais história, desde a da proposta do banqueiro que foi retirada aos preservativos que a burocracia não aconselha como devia. Além fronteiras que é como quem diz fora Europa vão-se arrastando as mesmas tramas em novos episódios, na África, nas Américas e no Médio Oriente.
Tendo falhado o prometido silêncio sobre as primeiras páginas do dia, regresso ao que me trouxe aqui: o relato breve de uma noite mal dormida.
De facto sonhei bastantes vezes já que o cão não parava de latir, e a cada latido era como os intervalos das séries televisivas, e lá tinha que gramar a publicidade. Por vezes recomeçava, engatando no momento imediatamente após o da interrupção, mas outras lá se ia a sequência. Houve até casos em que acho que trocaram as bobines [maneira de dizer, já que hoje, e no caso, deve ser tudo digital]. Com tudo isto acordei com aquela estranha sensação que nem sequer tinha adormecido. Como se tivesse regressado aos tempos das sessões da meia noite ou até das maratonas cinematográficas non-stop. Devo referir que à parte estas metafóricas acomodações para as noites de insónia o que de facto merece ser referido é o papel do cão.
Como melhor amigo do homem, como se diz, ajudaria também ao nosso descanso [o cão de guarda é uma espécie de anjo da guarda dos mais pragmáticos] não fosse o que talvez se possa chamar o seu excesso de zelo. Cuidando os nossos interesses não dá descanso a tudo e todos os que possam constituir real, imaginária, fictícia ou dissimulada ameaça. Por isso ladram, correm, agitam-se, rosnam, crescem, e vão até à mordidela ou mais, a cada sombra, ao vulto desenhado, ao intruso concreto, ao malfeitor palpável. Mas às vezes ficam apenas a correr atrás de moscas imaginadas ou tão efectivas como as próprias caudas perseguidas, como o Lobito e o Joe [com letra maiúscula, claro, pois a merecem os de boa cepa e igual índole] os pastores de diferentes memórias. Mas agora os tempos são outros e há míngua de espaço onde possam viver livres e ladrar ao vento e à caravana que passa.
Ficam por aqui as considerações a uma noite mal dormida [talvez um dia volte para o relato dos episódicos sonhos que por vezes as animam] e da integrada participação do cão. E, porque a referência o avivou, deixo parte de um desses sonhos, talvez no cenário de Pompeia, o Vesúvio ao longe a vomitar fogo e lava, as multidões em correria apavorada. Vejo-me então, atordoado, a olhar os mosaicos policromos e fascinado soletrar lentamente: c-a-v-e c-a-n-e-m [que é como quem diz cuidado com o cão! ou, como outros interpretam, os dentes do cão que a experiência nos convidaria a evitar e o boa conduta precaver].
Tenho apenas um rafeiro desenhado há mais de vinte anos, pensei ao acordar com a inquietação e a ladradura.
3 comments:
Um leitor apaixonado de Borges tinha, obviamente, que ter um blog superior.
Vou dar mais uma vista de olhos por aí. E logo, se me der licença, faço o link para aqui.
Bom post. Eu gostei muito mas adorei os desenhos.
Ó Irineu … [alias Funes…] … embora neste caso o pobre não desconfie, convenhamos que mesmo em escrito alheio o exagero faz corar o elogiado. Quanto ao resto já sabe: o portão está sempre aberto ‘para quem vem por bem’ [para ver como no azulejo] e o cão ainda é só esquisso…
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