Saturday, June 16, 2007

o escriba independente




Acaba de se sentar e tenciona começar a escrever. Ainda não sei como o irá fazer. [lembre-se que ainda não escreveu nada!] Cada um tem os seus modos particulares. Digamos que escolherá entre três hipóteses, comuns. Tem um título, tem um tema ou não tem nada e vai atacar a folha de papel e depois se verá. Suponhamos por um momento [para facilitar o andamento] que título e tema são entre si relacionados. Decidiu escrever sobre o tempo [essa chuva miudinha que cai lá fora, molha-tolos como também se diz aqui no burgo]. Vai pois escrever muito pouco ou nada sobre o tempo [no fim se verá] e tem já esse mesmo tempo por tema ou título. Decida-se. Vamos colocar as possibilidades. Comecemos com o tempo como título. É demasiado vago, meteu-se numa carga de trabalhos. Tempo. Sendo coisa pouca [cinco letrinhas apenas] pode ser um mar de coisas. Pense. O Tempo. Um Tempo. Ainda não chega [afinal não sei exactamente no que está a pensar] Mude a estratégia, afinal o tempo é ou pode ser um tema. Depois quando tudo estiver acabado pode escolher um título a condizer. Decidiu-se. Vai pois escrever sobre o tempo. [alto aí, esse não era precisamente o título que havia rejeitado umas linhas atrás?] Olha para mim e abana com a cabeça? Já percebi: esse sobre é para que eu saiba que esse é o tema e não o título. Digamos então que se sente capaz de discorrer sobre o tempo enquanto tema embora não se sentisse capaz de discorrer do tempo enquanto título de igual modo. Acontece. De facto o título tempo nada mais era que a versão compacta de tudo o que vai discorrer sobre o tempo. O olhar diz tudo. Vamos ter que limitar o tema e acrescentar o título, é o que eu lhe digo. Vá lá, 1…2…3 …experiência. O tempo na cidade. Afinal é o título ou o tema? Olhe que para tema desenvolvido é curto e para título… Vamos por partes. O que pensa escrever sobre o tempo na cidade para além disso mesmo, o tempo na cidade? Essa chuva miudinha que cai lá fora pode ser um bom começo para desenvolver o tema do tempo na cidade. Continue. [sempre quero ver que título vai dar a esta coisa] Esta chuva miudinha que cai lá fora, molha-tolos como dizem aqui no burgo…Alto, alto! Queira reparar que se limita a transcrever uma frase que já foi apresentada no início desta crónica. Limitou-se a por esta onde antes era essa e ao reflexivo se impor um indicativo e colectivo presente. Vá lá é pouco… “Esta chuva miudinha que cai lá fora, molha-tolos como dizem aqui no burgo”, disse o motorista do táxi, acrescentou. Finalmente. Continue. [de repente percebo que está a tentar descrever alguma coisa que vale pelo titulo, ou tema]. A pausa protege o impasse. Sim? e… é um perigo. Ainda agora vim de Pedras Rubras. Fui levar um clente. Era um emigrante. Finalmente arrancou. Ia desolado com a cidade, e vi um tipo a despistar-se. Reparo como ao escrever substituiu Porto [ou cidade] por burgoAssim não se pode trabalhar. Vejo que continua, indiferente à observação [afinal era uma observação sobre uma observação do inicio desta crónica, relativizo] Ele está a dar cabo disto, é buracos por todo o lado. Viu o S. João na avenida? É uma vergonha! Apercebo-me que se decidiu por uma contar um episódio do dia, deste sábado, pela madrugada ainda. Lá para baixo não se importou de gastar, por causa da corrida dos calhambeques! Tenho que lhe pedir que pare, pois vejo que a escrita está a tomar um curso não previsto. Lembra-se que tínhamos como sugestão um título e, ou um tema, que andaria à volta do tempo? Do tempo no Porto nesta manhã de sábado, esta chuva miudinha [molha-tolos, como se disse] que não nos larga todo o dia. Agora repare como a escrita o puxou para outras escritas. Percebo que o motorista do táxi seja um crítico. Da política até. Mas repare que se pegar no dicionário ou numa enciclopédia até, e procurar tempo, mesmo restringindo ao tempo-clima [que é a sua escolha para um tema, ou titulo, para a escrita, como disse no início] vai lá encontrar tudo, ou quase tudo o que é preciso para falar ou escrever sobre o tempo. O que vale por dizer também sobre o tempo na cidade do Porto no sábado dia 16 de Junho de 2007, a uma precisa hora, etc. etc. Ora, tudo isto já foi publicado há muito tempo [este é outro tempo, devo acrescentar] logo…onde é que vai com toda essa escrita acerca do que pensa ou não pensa, diz ou não diz um motorista de táxi acerca do governo da cidade neste deprimente dia de molha-tolos? Vejo que hesita. Seja razoável, nada disso pode ser encontrado em qualquer enciclopédia, dicionário, ou obra de referência sobre o tempo, ainda que sobre o tempo no Porto. Olha por cima do ombro e estamos olhos nos olhos, a pensar [penso eu agora]. Vislumbro-lhe um intento. Era apenas… [as palavras arrancam, ditas] Era apenas o relato de um dia deprimente [pausa] de um tempo deprimente, de um sábado de madrugada, do táxi que apanhei para me livrar da chuva miudinha. Ainda em forçado jejum que… Não o posso deixar continuar. Tínhamos acertado que esta crónica seria sobre a sua decisão de escrever. Recordo como isto começou “Acaba de se sentar e tenciona começar a escrever”, depois um título, ou um tema, tempo, tempo. Afinal acaba por andar às voltas e sobre o tempo…só as memórias [suas] de um sábado de manhã, muito cedo, a caminho da baixa, de táxi, uma chuva miudinha, a conversa, molha-tolos, a cidade, deprimente…



[Vou acabar com isto e nem lhe digo o título que havia escolhido para esta crónica de sábado 16 de Junho de 2007… não vá a conversa azedar.]


1 comment:

AM said...

que me dera saber escrever
e que bela foto